João de Deus: desenhador e padagogo

Ao recordar João de Deus nas comemorações do seu nascimento vem-nos à memória outro algarvio ilustre: Manuel Teixeira Gomes que, ainda jovem e por sua influência, se terá interessado pelas questões metafísicas e pela obra de alguns teólogos, designadamente por aquele que adjectivava como o “colossal” e “tremendo autor das Confissões”, Santo Agostinho, o criador do dogma, a pedra basilar da Igreja, a quem sempre votara uma devoção particular.

Teixeira Gomes que, no seu conturbado percurso pela Universidade de Coimbra, se terá cruzado com João de Deus, um poeta que o inspirava e de quem, ao longo de muitos anos de convivência, guardou algumas memórias e alguns esboços de fisionomias e silhuetas, como diria, riscados de forma hesitante, nos claros de papéis já servidos ou à margem de jornais velhos, que seriam divulgados em «Desenhos e anedotas do João de Deus», um curioso artigo publicado na revista Arte & Vida, em 1905.

A propósito do registo gráfico do seu velho amigo, Teixeira Gomes afirmava que seria impensável reproduzir o nu a quem nunca o estudara. Contudo, também admitia que a expressão non est hic: surrexit, (não está aqui: ressuscitou) com que o poeta devolvia uma página em branco a quem se atrevia a pedir-lhe um desenho, poderia nunca ter sido proferida se ele se tivesse dedicado com persistência e método ao estudo do desenho – a única fórmula que Teixeira Gomes admitia para se alcançar a originalidade de um estilo e o patamar de artista.

E João de Deus tinha noção de que a sua arte era a poesia e não o desenho – evitava falar das suas incursões gráficas e tinha mesmo pudor em admitir-lhes algum valor plástico ou estético.

Ainda assim, nas suas tentativas inacabadas, Teixeira Gomes conseguia distinguir-lhe um traço que dizia maravilhoso, quase leonardesco, como leonardesca considerava a sua inteligência: “não pelo arrojo dos vôos que desferia, mas pelas eurítmicas sínteses compreendidas na esfera onde ajeitava as suas multíplices aptidões” – aptidões que contemplavam o gosto pela música e o prazer de tocar viola, violoncelo, piano e órgão.

A divisão arbitrária das letras e as artes foi matéria sobre a qual Teixeira Gomes discorreu bastante. E neste contexto, pode dizer-se que João de Deus constituía um daqueles exemplos que lhe permitia meter as belas-letras nas belas-artes.

Mas, para além do interesse pelo desenho, outra faceta de João de Deus, talvez a mais conhecida e estudada, foi a da pedagogia para a leitura – uma outra arte, à qual, a esta sim, dedicou alguns anos de estudo e método: o método de João de Deus, que daria origem à Cartilha Maternal ou Arte de Leitura.

O mérito deste trabalho, elogiado ao longo dos anos por grande parte dos nossos intelectuais, designadamente os seus contemporâneos, está suficientemente estudado e divulgado, e o facto de hoje ainda muitas escolas primárias ensinarem a ler através do seu método, quase um século e meio depois de inventado, é a cabal demonstração do seu enorme sucesso pedagógico. Há, contudo, aspectos relacionados com a sua produção gráfica, porventura menos conhecidos, que talvez valha a pena recordar.

 

Até à publicação do método de João de Deus, a aprendizagem da leitura e da escrita esteve sempre submetida à memorização a partir de imagens associadas às letras dos abecedários. Já em 1554, este mesmo procedimento fora utilizado por D. Fr. João Soares, que faria imprimir em Coimbra a Cartinha para ensinar a ler e escrever. Posteriormente, com algumas variações metodológicas, dezenas de experiências foram feitas em Portugal na mesma base teórica, que pedagogicamente, com o apoio de imagens, partia do alfabeto, dos elementos mais simples de leitura, para chegar à composição das sílabas e das palavras, alterando-se apenas o tipo e a forma dos exemplos gráfico-imagéticos ou o processo de impressão, que, a partir de certa altura, passou a variar entre o tipográfico e o litográfico, com este a permitir utilizar gravuras a cor.

Chegados a 1853, quando António Feliciano de Castilho solicita à imprensa que divulgue o novo método que dizia ter inventado, ou seja, a “memorização por figuras e histórias de todos quantos caracteres e sinais que se podem apresentar a um leitor”, a lógica mantém-se inalterável. Ainda assim, com a convicção que lhe era própria, depois de explicar como o seu trabalho se diferenciava do curso de leitura do francês Pierre-Alexandre Lemare, em que se baseara, e do Ensaio sobre um novo modo de ensinar a ler, de António Araújo Travassos, Castilho refere-se ao seu «templo do saber» como um monumento que só poderia ser destruído por alguém que pudesse alçar no lugar dele outro maior.

Certamente não terá sido este o desafio que moveu João de Deus – que, por sinal, e não por acaso, estaria ao lado de Antero de Quental e de Teófilo Braga em oposição a Castilho na célebre «questão de bom senso e bom gosto», a escaldante disputa entre a tradição do Romantismo e a modernidade do Realismo –, no entanto, pode admitir-se que a sobrevivência da Cartilha Maternal terá justificado o apagamento do Método repentino de Castilho, que haveria de vigorar entre 1853 e 1888.

Com o detalhe da distinção silábica, e sobretudo o particular processo de impressão tipográfica, o dito modernismo de João de Deus passava a estruturar-se não na inteligível ilustração da palavra, mas na leitura animada da palavra inteligível. Como diria Carolina Michaelis de Vasconcelos, fundava-se, assim, uma inovação que tornava evidente a decomposição da palavra em sílabas sem a desmembrar barbaramente. Carolina Michaelis que, na altura, perante os detractores do processo, porque também os houve, se dispôs a defender a sua originalidade, já que o rastreio que terá feito a todos os métodos implementados no estrangeiro, designadamente na Alemanha, lhe dava a autoridade para afirmar peremptoriamente que não encontrara nenhum semelhante ao proposto por João de Deus.

Como já tivemos oportunidade de referir nas nossas Artes Gráficas e a imprensa em Portugal, depois de vários anos de experiências e testes, João de Deus deixou-nos uma obra-prima do ponto de vista pedagógico, mas também gráfico, dada a solução encontrada pelo tipógrafo portuense António José da Silva Teixeira para a reprodução e impressão das palavras e a redução expressiva dada a algumas das sílabas, através da impressão de tipos da mesma fonte e corpo, alternadamente lisos e «lavrados» ou «raiados», um processo complexo que exigia que a anatomia dos caracteres tipográficos fosse alterada, para simular o meio-tom (cinzento) só tecnicamente possível mais tarde com a invenção da trama fotográfica utilizada na fotogravura.

Desconhece-se se aqueles caracteres foram lavrados artesanalmente e de acordo com a necessidade da composição das palavras escolhidas como exemplos, ou se terão resultado da fundição de uma nova fonte. Desta ou de outra forma, a verdade é que, mais tarde, esta invenção teve repercussões quando materializada numa específica e concreta fonte, que pudemos encontrar no catálogo de uma fundição, e ainda na produção de vários tipos de vinhetas, muitas delas usadas na construção de enquadramentos de páginas e frontispícios de livros ou ainda nas chamadas composições fantasistas – de resto, invenção que não passava de um procedimento técnico muito comum na xilogravura e na gravura tipográfica, o que nos leva a acreditar na possibilidade dos ditos caracteres não terem sido fundidos em chumbo, mas abertos em matrizes de madeira.

Antes desta solução, outras haviam sido experimentadas por João de Deus, nomeadamente utilizando o preto e o vermelho – e até testadas pelo seu próprio irmão, o prior de Algoz, na inauguração da escola de Arcozelo, mas também na tipografia dos Irmãos Castro, onde esteve prevista a impressão do projecto – uma edição que acabaria por não se concretizar por falta de uma tinta cuja tonalidade do vermelho João de Deus entendia ser a mais conveniente.

Mas os testes das duas cores, que chegaram a ser entregues para análise na repartição de instrução pública, nunca convenceram o nosso poeta. A sua utilização apresentava alguns inconvenientes: era menos metódica, menos económica e, portanto, menos exequível. Por outro lado, entendia João de Deus que o vermelho era adorável nas faces, mas prejudicial à saúde dos olhos das crianças, razão que o preocupava como pedagogo atento e que poderia inviabilizar a aceitação da Cartilha.

Definitivamente, a sua preferência centrava-se na diferença de tom, no preto e cinzento. Contudo, optar por esta solução continuava a exigir duas cores e as respectivas duas impressões, que tornariam a obra menos acessível.

Por tudo o que ficou dito, pode falar-se da originalidade da ideia e da solução empregadas na edição da Cartilha, o que significa que não ficam dúvidas de que esta teve no autor do Campo das Flores o arquitecto e em António José da Silva Teixeira o designer. E os direitos de autor estariam justamente assegurados – facto que, após a morte de João de Deus, a viúva, D. Guilhermina de Bataglia Ramos, viria a não confirmar, num protesto público onde refere a falta de decoro dos vários plagiadores que entendeu denunciar: Simões Lopes e a sua Cartilha Infantil; Cândido Teixeira de Morais, com a publicação da Nova Cartilha Nacional, onde a contrafacção era patente no tipo de letra utilizado, no formato das páginas e na disposição das palavras e letras de cada lição; mas sobretudo Trindade Coelho que lançara o ABC do Povo, onde são efectivamente centradas as maiores e mais contundentes críticas.

Críticas que possivelmente resultaram de alguns comentários menos abonatórios feitos pelo próprio Trindade Coelho à Cartilha do poeta do amor, quando esta foi apresentada, designadamente notando-lhe a falta de instruções para os mestres que pretendessem ensinar por ela – uma lacuna que, de acordo com o juízo do crítico, não era suprida pelas notas que acompanhavam os exercícios, e o levava a afirmar que o projecto, só por si, não constituía um método. De resto, conclusão que haveria de contrariar quando, mais tarde, vem recordar que antes de João de Deus não existia um método, um sistema harmónico, ordenado, racional, profícuo e completo de ensinar a ler. Ao que acrescentava ainda a convicção de que um método que reunisse todos aqueles predicados estava reservado a João de Deus.

E críticas que sobretudo se detiveram naquela que Trindade Coelho, mais tarde, assinala como a sua invenção de uma nova fórmula de diferenciar as sílabas, mediante o emprego alternado de tintas diferentes, com que imprimiu, em Paris, o seu próprio ABC do Povo, editado em 1901.

Felizmente, a indignação de D. Guilhermina de Bataglia Ramos não chegou aos tribunais. À distância dos acontecimentos admitimos que essa demanda não teria sido justa para Trindade Coelho, um amante das letras e das artes, com muito de comum a João de Deus, e alguém cuja luta pela justiça e pela liberdade lhe acarretou tantos desgostos.

E, afinal, Trindade Coelho admirava tanto o poeta João de Deus quanto o pedagogo a quem atribuía a descoberta do raio X que tornara possível a visão anatómica do vocábulo, sem prejuízo, num ápice, da sua fisionomia e da sua vida.