A Festa dos Parvos

A propósito de Os Fastos de Públio Ovídio Nasão – obra traduzida em verso por António Feliciano de Castilho –, o jornalista António Rodrigues Sampaio escreve, com grande sentido de humor, um texto com o qual, esta semana, tropecei duas vezes. A primeira, ao consultar uma «Encyclopédia Pratica», de 1905, e a segunda, quando me divertia a ler um número do monárquico «Beco do Fala Só», de 1919.

Pela sua actualidade, decidi publicar algumas das suas principais sentenças. Julgo valer a pena ler.

O parvo não é uma invenção moderna, é um elemento da civi­lização histórica. A religião e o paganismo são concordantes neste ponto. As Sagradas Letras atestam que o número de parvos é infinito e que são bem-aventurados, porque é deles o Reino dos Céus. A história profana, pela sua parte, mostra que o parvo também é feliz neste mundo. […]

A antiguidade era mais avisada e mais sincera do que nós, porque chamava as coisas pelo seu próprio nome. O parvo moderno resiste à denominação e quer ser considerado à fina força um sábio. […]

Há parvos sábios e parvos ignorantes. Os parvos mais parvos são os parvos sábios, segundo Molière, que diz: un sot savant est plus sot qu’un sot ignorant.

 […] há três espécies de parvos: os parvos que não sabem inteiramente nada, os parvos que sabem mal, e os parvos que sabem tudo menos o que deviam saber. Esta última classe é hoje a mais numerosa.

O parvo tem admiradores e entusiastas nos mais parvos que ele, como se vê nesta sentença de Boileau: un sot trouve toujours un plus sot qui l’admire.

 Há parvos mudos e parvos falantes. Os parvos mudos são os que nunca deram provas do seu saber, mas que soltam alguns monossílabos misteriosos, e baixinho, numa roda de outros mais parvos que os contemplam sem os contrariar. Os parvos falantes são os mequetrefes que se intro­metem a decidir aquilo que nada entendem.

O parvo enche o mundo de suas façanhas, porque não fala senão de si. Se é militar, julga das cam­panhas de Alexandre, de César e de Bonaparte, e nota-lhes os erros, mas nunca soube comandar um destacamento […].

 Se é juiz, o parvo clama contra a administração da justiça e nunca proferiu sentença que não fosse anulada […].

 Se é médico ou cirurgião, o parvo discorre sobre todas as doenças, censura todo o tratamento, mas não há notícia de enfermo que lhe não morresse nas mãos.

Se é advogado, o parvo nunca fala senão na letra e no espírito da lei, mas o escritório está deserto como as ruas do Sião, porque o parvo não advoga causa que não perca.

Se é industrial, o parvo explica com admirável verbosidade todos os segredos do processo da indústria, mas falham-lhe sempre na prática todos os cálculos.

Se é candidato em algumas eleições, o parvo tem sempre a seu favor o voto de todos os eleitores, mas consultada a urna só se encontra no fundo um voto a seu favor, que é o dele.

Se é jornalista, o parvo não expõe opiniões, profere oráculos, canta a vitória dos seus correligionários em véspera da sua derrota, anuncia a morte dos seus adversários na véspera do seu triunfo, apregoa a estabilidade do Governo que apoia duas horas antes da sua demissão. Exonera os ministros que combate quando o seu poder está mais seguro. Afiança a paz quando está para romper a guerra. Prognostica uma conflagração geral quando as nações desarmam e licenceiam os seus exércitos. […]

O parvo antigo estragava o que fazia, o parvo moderno arrebenta, se não estraga o que os outros fazem melhor que ele. […]

A estupidez que vem entre nós estabelecer o seu império, teve também o seu Homero. Se o parvo não tem sido há muito adorado, é porque, elevando-se todos os ídolos, não ficou um para adorar.

Cremos piamente que a raça dos parvos não acabará nunca. […]