OS MISTÉRIOS DA PRAIA DA ROCHA

O olhanense Marcos Algarve, que poucos conhecerão, mas que deu nome a uma discreta rua de Portimão, a caminho de Alvor, bateu-me à porta e eu abri-a satisfeito por recebê-lo em minha casa.

Tratava-se de um encontro inesperado e não fazia ideia do que trataria a nossa conversa. Sabia, sim, que os Mistérios da Praia da Rocha eram a matéria que ele se propunha desvendar e que me deixava muito curioso.

Sem nos termos alguma vez cruzado pessoalmente, conhecia-o apenas do longínquo Almanach do Algarve, publicado em 1902, onde, entre outras coisas interessantes, descobri um curioso retrato de João de Deus, que tive o prazer de publicar no volume III de As Artes Gráficas e a Imprensa em Portugal.

Entretanto, conduzi-o à biblioteca, onde nos sentámos comodamente, e ele, antes de folhear o seu livro de misteriosas histórias, calculava eu, fixado nas estantes da sala, em silêncio, correu impaciente as lombadas de algumas das obras ali alinhadas, meneando a cabeça, num sinal de aprovação, o que me deixou mais tranquilo.  

Sabe, diz-me ele, com alguma vaidade a brilhar-lhe nos olhos, eu tive o privilégio de conhecer muita desta gente que aqui tem impressa, em forma de livro. Aliás, muitas destas personagens, portuguesas e estrangeiras, foram intérpretes dos Mistérios que coligi e publiquei em 1926… De resto, continuou ele, muitos conheci-os quando, amiúde, rumavam à Praia da Rocha… uns, para retemperarem o organismo debilitado por excesso de labor intelectual, outros, de tela e pincel em punho, quando por cá se demoravam simplesmente em busca dos seus encantos serenos, da sinfonia dos sons ou da policromia das cores. Claro que alguns também vinham à procura de aventura, sobretudo em Agosto e Setembro, quando a animação cosmopolita atraía muitas aves de arribação e pelo Casino esvoaçavam fogosas filhas da Andaluzia ou as louras britânicas, um tipo de mulher glacial, semelhante a um arbusto esguio, mas muito apreciado por vorazes admiradores locais. Ainda assim, por cá também eram frequentes os políticos em meditações ideológicas e estratégicas… Certo é que, a partir de Maio todas as casas e partes de casa se alugavam, e, a partir de Junho, quando a Praia da Rocha retomava a estranha majestade de um paraíso, o Hotel da Rocha ficava completamente entupido e os quartos alugados por particulares chegavam a alojar dois e três hóspedes, alguns deles distribuídos pelo chão, em camas improvisadas.

Perante o panorama que o meu interlocutor descrevia, como forma de introdução aos ditos Mistérios que pretendia desvendar, afinal, pensava eu, passados 100 anos, se algumas coisas se mantêm semelhantes, outras terão radicalmente mudado: o velho bairro de gente simples que alugava camas foi substituído por hotéis e torres de alojamento em massa; a selecta burguesia veraneante deu lugar a um mar encapelado de gente disforme, mas aparentemente feliz, que se acotovela, num curto trajecto, entre o Forte de Santa Catarina e o Miradouro, e ao som de todas as músicas do mundo, numa trovoada medonha que incomoda o sono de quem não está a banhos. E também é verdade que o insuportável Teófilo, como o que surge retratado nos Mistérios, já não existe ou, pelo menos, não é detectado no meio do enorme turbilhão que atropela quem vem à Praia da Rocha procurar o ar puro de que necessita para sobreviver ao sufocante quotidiano das grandes cidades. Agora, o dito Teófilo terá encarnado nos vendedores de pechisbeque e outras misérias oriundas da China, da Índia e de Marrocos, que transformam aquela que foi considerada a praia mais bela da Europa num aborrecido arraial que alguns inevitavelmente passaram a ignorar.

Desabafo à parte, estaria, talvez, na hora de voltar ao encontro com Marcos Algarve e àquelas que ele próprio confessa não passarem de despretensiosas crónicas literárias e novelas naturalistas; seria normal retomar a sua estimulante prosa, estruturada num sentido crítico, por vezes, agreste, muito caricatural, mas inundada da experiência vivida na transição da Monarquia para a República, e da muita cultura dos homens que transitaram do século XIX para o século XX, transpondo o que restava do Romantismo para aportarem ao Modernismo… Mas não! Não o vou fazer porque não seria simpático da minha parte roubar o prazer da sua leitura.

E para terminar, direi apenas que Manuel Teixeira Gomes, em quem Marcos Algarve depositou esperança, uma esperança ainda muito republicana, num poema que lhe dedicou aquando da sua tomada de posse como presidente, foi uma personagem que nos Mistérios apenas surgiu em breves passagens… E eu estranhei.

Vale a pena dizer que, perante a minha perplexidade, e para me aliviar a dúvida, Marcos Algarve reservou uma elucidativa nota final, de cinco páginas, ao nosso ilustre escritor, discorrendo sobre a lógica de um jornal republicano o apontar como modelo de virtudes cívicas, e já em 1925, para ocupar o lugar que deixara vago, um jornal monárquico indicar Gomes Teixeira, um sábio professor, como o melhor paladino da ciência e da honra.

2 comentários em “OS MISTÉRIOS DA PRAIA DA ROCHA

  1. Mais uma ” conversa” muito interessante, bem estruturada e muito bem escrita! Já se viu que as circunstâncias não são muito diferentes do que se passa hoje! O pior são as deformidades!! Gostei! Mas fiquei defraudada!! E então os mistérios? Vais ter que me emprestar o livro! Estou curiosa! Obrigado por tão agradável leitura! Beijinhos!

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