Somos um país de gente singular. E esta guerra com o «covid 19» está a pôr muita dessa gente à prova. Claro que não vou falar dos nossos políticos. Talvez, espero, quando a guerra terminar, se faça um balanço da sua singularidade. Nem vou falar dos irresponsáveis que não acatam os avisos para se manterem em casa. Alguns desses aprenderão com o impacto do bicho nas suas vidas e outros, porventura, já cá não estarão para tirar conclusões.
Mas vou relatar-vos uma breve crónica da minha facilidade em sair de casa sem qualquer receio do malfeitor que por aí anda à solta.
De manhã, como é devido, faço a minha higiene, apronto-me com a farpela de que mais gosto e, depois de um frugal pequeno almoço, com muito afecto, despeço-me da minha companheira, saio porta fora e desço a escadaria que me leva onde adoro praticar uma espécie de rotina matinal que começa com uma caminhada tranquila e muita ginástica mental.
Ontem, por exemplo, quando percorria o espaço onde guardo as minhas relíquias bibliográficas, depois de subir e descer várias estantes em busca de uma obra que desejava consultar, decidi fazer o esforçado exercício de abrir e fechar algumas gavetas onde imaginava poder encontrá-la.
É, então, nesta musculada ginástica, que deparo com um volume com algumas páginas há muito reservadas para uma posterior leitura. Com o cuidado e o carinho que as coisas de idade exigem e merecem, pego no livro, abro-o nas ditas páginas marcadas e, de repente, dou com uma personagem singular.
Claro que imediatamente suspendi a pesquisa inicial, e, a partir dali, com o companheiro que encontrara – por sinal alguém que justificava a sua longevidade com a ginástica matinal de que, durante toda a sua vida, nunca prescindira –, a minha caminhada mudou significativamente de rumo.
Primeiro, sentámo-nos para conversar.
– Numa altura tão complicada como a que estamos a viver, sinceramente não esperava encontrar-te por aqui – disparei eu, com um sorriso de admiração, mas, ao mesmo tempo, também de espanto.
– É verdade, tenho andado por aí disfarçado a observar a calamidade que desabou sobre o nosso país.
– Mas, estás mesmo disfarçado! Quase não te reconhecia…
– Bem, disfarçados andamos todos. Uns com máscaras para evitar o maldito vírus e outros sem máscaras para nos enganarem a todos.
Entretanto, acompanhando-lhe os passos, a nossa conversa seguiu na direcção do mar e das musas que tanto inspiraram a sua obra. Inevitavelmente falámos de arte e particularmente de Celso Hermínio que, com o sentido de humor com que normalmente ilustrava os seus retratos, lhe tinha colocado aquele chapéu, aquelas barbas e até revirado o bigode.
Mas, de repente, passadas muitas horas a trepar as dunas da meia-praia e a percorrer as falésias entre João de Ourém e a Fortaleza de Santa Catarina, quando nos preparávamos para regressar ao ponto de partida, diz-me ele:
– Afinal, tu não tens medo do vírus? Não estás a usar máscara…
– Tenho medo, e não é pouco! Por isso é que procuro reforçar o meu sistema imunológico rodeando-me de livros.
– Olha, eu já não tenho medo de nada, mas, por via das dúvidas, é melhor adiantar-me à declaração do estado de emergência, e recolher-me no silêncio da minha gaveta. E, já agora, não reveles o meu disfarce.