Associada à inauguração do Núcleo Histórico da Imprensa de Gutenberg e do Pentateuco de Faro, o Prof. Manuel Cadafaz de Matos, um dos nossos mais prestigiados historiadores do livro antigo, apresentou, de forma eloquente e até com alguma emoção, o último trabalho de José Pacheco de quem deixamos a comunicação que proferiu perante um auditório atento e interessado, que mal cabia na Sala do Trono da antiga capela do Paço Episcopal de Faro:
De uma forma sintética, gostava de vos dizer que estes quatro volumes hoje apresentados resultaram de um longo percurso, em várias etapas e vários períodos de pausa, umas vezes para cumprir a necessidade de deixar assentar as ideias, e outras para me concentrar em alguns trabalhos que foram despertando a minha curiosidade e exigindo a minha atenção particular.
Devo dizer que o largo espaço de tempo que consumi neste projecto também se deve particularmente à minha formação como designer. Isto porque, como o velho arquitipógrafo, não me limitei à composição de um ensaio que entreguei numa editora: a exigente recuperação e restauro das imagens que fazem parte da obra, bem como a definição do seu layout, paginação, capas e toda a preparação que antecede a sua entrada na Gráfica Comercial de Loulé, absorveram-me um tempo que naturalmente é impossível de quantificar.
De qualquer forma, posso dizer-vos que todo este trabalho me deu um enorme prazer porque está associado a uma série de desafios com os quais fui deparando ao longo da minha vida e que estimularam a curiosidade, primeiro como estudante, depois como designer e professor.
E o primeiro desafio que recordo teve a ver com a necessidade de conhecer a história do design gráfico, particularmente do design
gráfico em Portugal: no tempo em que fui aluno na Faculdade de Belas Artes de Lisboa esta história não existia – falava-se da revolução industrial, das exposições Universais e sobretudo dos feitos da arquitectura e da engenharia, e pouco mais – e esse facto inquietou-me bastante;
Outro desafio resultou da minha vontade em contribuir para uma história da imprensa em Portugal reclamada há mais de um século: por exemplo, entre outros, por Joaquim Martins de Carvalho, um intelectual ligado aos jornais, sobretudo de Coimbra, que chegou a reunir um grupo de estudiosos com os quais pensou poder concretizar esse desígnio, embora nunca o tenha conseguido; ou por Tito de Noronha, outro intelectual que pouca gente saberá que, ainda jovem, foi compositor tipográfico na Imprensa Nacional, e que, em 1857, chegou a publicar alguns «Ensaios», onde fez questão de criticar a inexistência de uma história da imprensa em Portugal, quando, como dizia, a maior parte dos países da Europa já tinha a sua;
Depois, desafiado fui por uma falha na história do livro em Portugal, onde, como ambicionava José Pina Martins, se envolvessem os historiadores da arte, bem como pela falta de uma história da imprensa e das artes gráficas que partisse da sua verdadeira origem: a invenção da tipografia e a sua introdução em Portugal. Isto porque as histórias do design gráfico, salvo raras excepções, começam no século XX e porque também é regra que as histórias da nossa imprensa passem ao lado dos artistas gráficos, omitindo, talvez por desconhecimento, que muitos dos nossos mais importantes jornalistas do século XIX e parte do século XX começaram por ser tipógrafos, ou que a maioria dos jornais operários e das publicações ilustradas, bem como alguns de cariz político ou generalista foram editados exactamente sob a responsabilidade de artistas gráficos e não de jornalistas, publicistas ou escritores públicos.
A verdade é acabei também confrontado com a falta de uma história que se focasse na nossa cultura impressa, cruzando as letras e as artes sem esquecer o design gráfico-tipográfico, bem como com a inexistencia de uma história que revelasse a importância dos artistas gráficos no contexto da evolução do gosto, das ideologias e da cultura em Portugal: para além de saberem ler e escrever, os tipógrafos eram obrigados a aprender línguas e, por isso, faziam-se tradutores; e ao acompanharem em primeira mão as notícias sobre os movimentos internacionais tornavam-se esclarecidos membros das associações culturais, designadamente dinamizando clubes de leitura, organizando bibliotecas e envolvendo-se com a crítica de arte e a crítica tipográfica – esta uma área de intervenção que hoje não tem lugar na nossa imprensa.
Outro dos desafios foi também a possibilidade de me envolver com uma história que revelasse a real importância dos artistas gráficos no âmbito da luta de classes em Portugal: tem-se escrito muito sobre esta matéria, mas pouco relativamente à participação concreta dos artistas gráficos – uma classe que naturalmente foi sempre a mais letrada e a mais culta de todas as classes operárias. E isso é visível quando conhecemos a sua enorme capacidade de dinamização associativa e protestativa, designadamente até à frente de associações de classe que não a sua – não é invulgar encontrar tipógrafos integrados na direcção de associações de profissionais pouco letrados ou mesmo iletrados, e também não é invulgar, pelo contrário, encontrar tipógrafos activamente envolvidos na formação dos partidos políticos.
E um desafio foi ainda a necessidade de pesquisar e sistematizar dados úteis para uma história da indústria do livro e do jornal em Portugal – por sinal a primeira indústria de todas as indústrias, e, talvez por isso, em muitos momentos da história, denominada a Indústria das Indústrias.
finalmente, um grande desafio foi avançar para uma história, onde a imagem não surgisse apenas como ilustração da palavra escrita, mas também onde a imagem, pela sua importância documental, pudesse surgir ilustrada pela palavra. De certa forma, adoptando a imagem como uma importante fonte documental, e, por isso, a razão da palavra – e, de certa forma, adoptando também aquela que era, muitas vezes, no século XIX, a lógica da notícia: era vulgar os editores distribuírem imagens pelos jornalistas e publicistas, a partir das quais estes tinham de escrever um artigo, o que, de certa forma, invertia a lógica da normal relação entre a palavra e a imagem/ilustração.
Na prática, estou a falar de uma história que, de algum modo, ressuscitasse a imagem de muita gente de que as histórias falam sem nunca ninguém lhes ver a face; mas que também desse vida ao arquivo de um património gráfico-imagético difícil de localizar, dada a sua dispersão por milhares de livros, jornais e revistas já esquecidos e apenas estimados e conservados por alguns colecionadores e bibliotecas, a que a maioria dos portugueses, por razões materiais e culturais, não tem condições nem o hábito de aceder.
Resta-me dizer que, para além do possível contributo para as belas e interessantes histórias que fui referindo ao longo destes vários desafios, este trabalho pretende sobretudo homenagear os artistas gráficos, os jornalistas e todos aqueles que justamente se assumiram como a alavanca da civilização, mas também, eventualmente, participar de algumas efemérides, dando a conhecer uma boa parte da história da Imprensa Nacional, que celebra este ano 250 anos de existência, recordando a enorme importância desta instituição no contexto da cultura em Portugal; dando conta do papel fundamental que desempenhou no ensino e na evolução das nossas artes gráficas, mas também da relação difícil que manteve com a indústria tipográfica particular – relação difícil que, infelizmente, se mantém até aos nossos dias.
Efemérides que passam também por destacar algumas das históricas figuras das nossas artes gráficas, como, por exemplo, o mestre Joaquim Carneiro da Silva, que faz este ano 200 anos que faleceu, ou o desenhador, caricaturista, gravador e publicista Francisco Nogueira da Silva e o compositor tipográfico, revisor e publicista Francisco Vieira da Silva Júnior, ambos falecidos há 150 anos.
Para terminar, espero que este meu trabalho seja útil e que vos entusiasme a ideia da publicação, para a qual tenciono avançar, dos próximos volumes referentes à primeira metade do século XX.