e as histórias que a História omite por decência
A Lanterna, que surge em 1867 e que se mantém acesa durante seis anos, deverá constituir caso único na imprensa de todo o mundo, ao alterar o seu título cerca de três centenas de vezes.
Como todas as folhas políticas ou panfletos clandestinos tornou-se num natural incómodo para D. Luís I, mas sobretudo uma dor de cabeça para a «Camarilha», definida por António Augusto da Silva Lobo, aquele que se admite ter sido o seu redactor principal, como a «invenção diabólica para comprometer os povos e os reis» e, em suma, «para fazer a desgraça das Nações».
E o que ficou dito ao longo das páginas da verrinosa Lanterna descreve-nos um período da história do país, cujos acontecimentos os próprios historiadores nunca
se sentiram à vontade para destacar como factos merecedores de serem inscritos nos seus textos e nas suas publicações.
Mas esta é uma História das Histórias que não vem ao caso, porque o que nos motivou a acender a velha Lanterna é uma estória picaresca, uma notícia da Corte socialmente interessante e, porventura, desconhecida da maioria dos portugueses, que decidimos transcrever de um número publicado em Junho de 1873:
Está em leilão o espólio da falecida imperatriz do Brasil.
Tem sido vendido em almoeda tudo quanto pertenceu à viúva de D. Pedro IV.
Os seus vestidos foram enriquecer o guarda-roupa do Teatro de D. Maria II.
Agora está em praça a sua mobília, e a sua roupa, e os objectos do seu uso doméstico, toda a decoração, enfim, daquele templo das Janelas Verdes, onde é mister dizê-lo, em preito da verdade, a dignidade, a decência e a honra tiveram sempre culto.
A cama onde faleceu a princesa Amélia, a filha querida da imperatriz, foi arrematada em praça por um burguês abastado.
O leito onde se finou a própria imperatriz, se não foi profanar-se em alguma casa de prostituição, foi porque a piedade de uns servos dedicados da defunta princesa lhes inspirou a ideia de o arrematarem, para o furtarem a uma vida de aventuras, que seria o insulto à memória da sua virtuosa possuidora.
E assim os quadros, as roupas e os móveis, tudo tem estado na praça pública, em exposição às vistas calculadoras dos agiotas usurários e dos ferros-velhos mesquinhos, que vêem no que compram o valor positivo, e não têm olhos que conhecem o preço estimativo que valem as relíquias de família.
E não admira.
Como há-de a especulação respeitar o que a família não respeita?
A herdeira universal dos bens da imperatriz é a rainha da Suécia, sua irmã.
Em Portugal é rei um neto de D. Pedro IV, que senta num trono que lhe levantou, ajudado pelos sacrifícios do país, o marido da imperatriz D. Amélia.
E o neto do imperador, e a irmã da imperatriz, um rei e uma rainha, assistem de braços cruzados ao leilão em que são vendidos os objectos que pertenceram à esposa de D. Pedro IV.
Como o egoísmo e o cinismo predominam audazes nas raças reais!
[…]
Como o espólio de uma imperatriz se equipara ao mísero espólio de um pobre, que vende a mobília para pagar o enterro do pai, ou que lhe põem em praça os móveis para satisfazer o que deve à fazenda pelas contribuições que devoram os poderosos insaciáveis dos camarilheiros.
A diferença é que na praça onde se arrematam os mesquinhos haveres dos pobres há sussurro das lágrimas quando um objecto venerado na família passa a mãos que o profanam; e no leilão onde se vendem os bens dos reis e dos imperadores hão só o vosear da cobiça dos que compram e o sorriso cínico dos que vendem.
Triste condição a dos que vivem das tristezas dos povos!
[…]
Que custava ao rei de Portugal, que tanto desperdiça em banquetes e festas, e gozos ilícitos, aplicar algumas somas das que esbanja em ofensa à miséria pública, na aquisição desses objectos que pertenceram ao avô que lhe conquistou o trono […]
Bem, depois deste breve e pouco dignificante reflexo da nossa monarquia, menos rasgado e menos incisivo, mas incomparavelmente menos violento que muitos outros sorrateiramente dados à estampa ao longo dos anos, a verdade é que sabemos que António Silva Lobo já havia feito as malas e atravessado o Atlântico, em direcção ao Rio de Janeiro; que o seu amigo e substituto, o implacável jornalista Francisco Luís Coutinho de Miranda, se evaporou da cena política; e que a viva chama da Lanterna se apagou de vez, encadernada no seu décimo e último volume.
Para a história, pode dizer-se que ficou apenas uma imperatriz digna da admiração do povo e um rei popular, culto e amigo das artes. E claro que o dito povo, cuja simpatia pela Lanterna havia obrigado o seu editor a mandar imprimir segundas, terceiras e quartas edições de muitos dos números do radical jornal, inevitavelmente não ultrapassaria a porta dessa mesma história, encandeado pelo brilho regenerador do ministro Fontes Pereira de Melo.
Que bizarro! Somos mesmo um país de estranho! É para quem foram os lucros do leilão? Fico à espera de mais notícias da Lanterna! Talvez alguém escreva algo parecido sobre as obras de arte do Estado desaparecidas!