As coisas da arte em Portugal

Com mais de um século de atraso, acabámos de ler que o governo de Portugal, entre outras malfeitorias contra o património nacional, depois de ter «espatifado» o belo lustre do nosso Teatro S. Carlos, se preparava também para vender o lustre do Teatro D. Maria II.

 

Na altura, pela extravagância, a notícia chegou a passar por boato. E hoje, passados tantos anos, não deixamos de ficar incrédulos. De facto, o inacreditável sucedeu!

O Real Teatro de S. Carlos, em 1885.

Apesar de ter acontecido em tempos diferentes, segundo a notícia, o lustre que iluminava o Real Theatro S. Carlos foi vendido «por trinta ou quarenta mil réis» a um inteligente comprador que o revenderia por «três contos e tanto».

Sem uma confirmação da informação, o facto terá acontecido na segunda metade do século XIX, depois da introdução da iluminação a gás, quando, em 1855, o primitivo lustre a azeite foi trocado por outro mais moderno – mandado vir de Paris por um valor de 1:530$000 réis – ou provavelmente mais tarde, substituído este último, já no final do século, quando a pretexto da introdução da luz eléctrica se fizeram inqualificáveis atrocidades, 

O Teatro de D. Maria II, em 1846.

não seguindo a lógica da reconversão dos sistemas de iluminação, como era regra na maioria dos países da Europa, designadamente em França, para onde acabou por ser enviado para iluminar o Casino de Aix-les-Bains.

Já o lustre do Teatro D. Maria II, que chegou a ter o mesmo destino aprontado – curiosamente numa altura em que o presidente Loubet era recebido com pompa e circunstância e aos principais monumentos nacionais era dada uma lavagem «a la minuta» para disfarçar a incúria que grassava no país –, acabou por não ser vendido graças à oposição de «alguns homens de bom gosto, com a cabeça no seu lugar e com a educação artística necessária para repelir o propósito de semelhante atentado». De resto, pode mesmo falar-se em duplo atentado, dado que o desclassificado projecto tinha previsto apear o monumental lustre para, no seu lugar, serem instalados quatro arcos voltaicos, à semelhança dos que haviam sido colocados no Coliseu. Na prática, para além de se confundir o primeiro teatro de declamação no país com um «circo de cavalinhos», esta era uma obra que exigia que se destruísse uma pintura de Columbano Bordalo Pinheiro, ou seja, mais uma barbaridade, na altura, corajosamente travada pelos protestos dos próprios actores do D. Maria.

Porque não conhecemos o Casino de Aix-les-Bains, não podemos confirmar que o lustre do S. Carlos continua a iluminá-lo, no entanto, a verdade é que, ao acedermos aos seus documentos de promoção e divulgação, deparamos com uma referência ao icónico e belo lustre adquirido no século XIX.

O que podemos afirmar é que Alexandre Herculano, perante a destruição do nosso património, tinha toda a razão quando violentamente se referia aos mentecaptos do camartelo, que acreditavam em Deus, mas não na Arte.

E a propósito disto tudo, vem-nos à memória as célebres jóias pertencentes ao espólio do Palácio da Ajuda. Jóias que em 2002, expostas em Haia, na Holanda, se esfumaram nos sacos de uma invisível quadrilha de ladrões.

Esperemos que a República, que recebeu meia-dúzia de milhões de indemnização, não se sinta compensada, ao ponto de ter abandonado o desígnio de recuperar alguns dos lustres da nossa Monarquia.

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