Numa Sublime Cruzada em Busca do Belo
No próximo dia 27 de Maio, faz 160 anos que Manuel Teixeira Gomes nasceu em Portimão. É, portanto, altura de comemorarmos. Decidi, por isso, republicar um conjunto de textos, que juntei Numa Sublime Cruzada em Busca do Belo, onde procurei desvendar a sua intimidade com o prodigioso mistério das artes e das letras.
E vou começar por onde inevitavelmente devo começar: por uma Introdução.
QUANDO a propósito da composição de «um retrato» de Manuel Teixeira Gomes, sob o cenário da sua relação com a arte e a cultura do seu tempo, pensámos em três bibliotecas que eventualmente poderiam ajudar a caracterizar a sua personalidade e o seu pensamento – uma possível, outra indispensável e outra ainda que designámos como a da memória – sabíamos que este era um caminho possível para traçarmos o seu perfil. Contudo, também tínhamos como certo que não seria fácil desvendar o homem que no «pensar por imagens» via o único processo eficaz para a inteligência perscrutar aqueles que considerava os altos problemas da filosofia, da ciência e da arte.
Ainda assim, feita esta primeira abordagem, que passou pela leitura e análise das imagens e dos textos impressos num número significativo de publicações oitocentistas, sobretudo as associadas à imprensa ilustrada, mas também outras onde MTG teve oportunidade de publicar os seus artigos, não foi difícil cruzarmo-nos com alguns dos principais estímulos que conduziriam a sua vida: a viagem, associada à aventura da descoberta de um mundo novo, muito diferente daquele que circundava a pequena Vila Nova de Portimão; as belas-artes, reproduzidas através da gravura em madeira e divulgadas na monumentalidade dos edifícios históricos erguidos nalgumas das cidades míticas europeias e nas obras dos grandes pintores e escultores renascentistas ou contemporâneos; e ainda as belas-letras, designadamente divulgadas através de textos literários e outros do âmbito da crítica e da teoria das artes e da estética. Todavia, mais do que identificar os estímulos que iluminaram a sua curiosidade, o nosso breve ensaio despertou-nos para um novo desafio, com outra dimensão e outra profundidade, que exigia rastrear o itinerário ligado à sedimentação da sua erudição e àquela que ele próprio referia como a sublime cruzada de correr o mundo em busca do belo.
E esta, para nós, passou também a ser uma cruzada, mas uma cruzada tão complexa quanto surpreendente. Exigia seguir-lhe os passos, no rasto da cultura europeia e no convívio com as obras dos escritores, poetas e filósofos que podiam ajudar a clarificar as suas opções teóricas, quer através das afinidades, quer das divergências que estabelecia com eles, quer ainda identificando algumas das possíveis contradições do seu próprio discurso. Neste sentido, era inevitável que voltássemos à sua obra escrita, sobretudo à que resultou da sua reconhecida e confessada febre epistolar e particularmente da que manteve com Columbano Bordalo Pinheiro, onde, de forma desinibida, como dizia, no desalinho da conversação despretensiosa, foi capaz de se expor.
Estruturada a metodologia, num primeiro momento, decidimos reler um conjunto de cartas onde, durante dois anos, na senda de les grands tourists e de um número assina-lável de intelectuais oitocentistas, sobretudo europeus, procurou reportar as suas viagens – realizadas, como gostava, de forma lenta, atenta, perspicaz e apaixonada – e as suas solitárias divagações sobre arte.
Num segundo momento, a nossa atenção centrou-se num novo conjunto de mais seis cartas a que MTG dá o título de solilóquios, a primeira ainda enviada a Columbano, e as seguintes, escritas depois da sua morte, onde registou algumas das suas experiências e juízos estéticos, agora, como reconhecia, de forma completamente livre do possível contraditório a que estaria sujeito nas respostas do amigo, bem como livre das restrições daqueles que considerava os seus critérios de gosto, por vezes intolerantes, e que
Manuel Teixeira Gomes, acompanhado por alguns amigos, quando embarcava no vapor Zeus, para jamais regressar ao seu País.
tinham o particular poder e a autoridade de embaraçar as suas próprias apreciações. Estas cartas tornaram-se, assim, a espinha dorsal do “corpo de doutrina” que MTG confessava ter tido a ambição de concretizar, embora nunca tenha passado de uma ideia que, pouco antes do falecimento de Columbano, tinha em mente – um projecto que referia como a sua estética, e a alheia, “sem, naturalmente, pretender ensinar ninguém, e ainda menos dar novidade” e que caracterizava como um simples apanhado de impressões, falhas de imprevisto, mas ditas a seu modo. E assumindo nós esse desígnio, para além deste núcleo de dados essenciais, percebemos que era também necessário intersectá-lo com toda a possível informação complementar relevante que pudéssemos recolher nas restantes obras publicadas, bem como, acimade tudo, imprescindível era reflectir naquela que denominava a sua memória inconsciente, donde admitíamos ecoarem, na forma de paráfrases, algumas das suas sentenças, o que significava deduzir a origem do conhecimento que dava forma ao seu pensamento, nas suas certezas e nas suas interrogações em torno da arte e da estética.
Nesta lógica, a nossa pesquisa passou a ter como indispensável a sobreposição e cruzamento dos seus textos com os dos principais autores que constam, ou não, das suas raras citações e referências teóricas, em muitos casos, não identificadas, e noutras, simplesmente não referidas senão implicitamente.
Definida a regra que nos obrigava a seguir de perto o seu olhar, tal como optámos por observar atentamente, in loco, as principais obras de arte que lhe interessaram particularmente, e sobre as quais discorreu, também, no que diz respeito aos livros, jornais e revistas que acumulara na sua memória, não podíamos deixar de os consultar nas edições mais prováveis do seu próprio tempo de leitura, ou seja, nalgumas das edições em inglês, mas sobretudo nas impressas em francês, que lhe permitiram transpor o obstáculo da língua alemã, de que se lamentava não dominar, para chegar à que considerava a generosa fecundidade do idealismo, onde era fácil confrontar-se com “tantos loucos teimosos”, através da obra de filósofos, como Schopenhauer ou Nietzsche, e poetas, como Goethe ou Heine, que dizia terem aformoseado a sua vida.
Com base neste conjunto de pressupostos e intenções, e sem qualquer outro intuito que não o de trazer ao debate um autor que se mantém completamente ignorado no âmbito dos estudos de arte e nos fóruns da investigação estético-filosófica, decidimos, assim, dar forma ao dito «corpo de doutrina», não de forma sistematizada, mas de acordo e na sequência da produção dos seus textos, às reflexões que dizia apontar sumariamente e ao sabor da fantasia, mas que não deixam de nos oferecer a sua visão estética do mundo.
Depois do Discurso do Desejo, onde, de forma apaixonada, Urbano Tavares Rodrigues se empenhou na definição da lógica da produção literária de MTG, sentíamos que faltava descobrir o homem que entendia nada ganhar, sobre os desvarios do «subconsciente», deixando o «consciente» fantasiar a seu gosto, porque, como dizia, não havia remédio: mesmo a cavalo, puxando as rédeas e apertando os joelhos, a fantasia perdia as estribeiras e desnorteava.
Sentíamos, portanto, que não fazia sentido continuar a interpretar MTG através de algumas pinceladas, por vezes sem esforço nem ciência, como ele próprio exigia dos verdadeiros pintores, onde a sua extraordinária imaginação não estivesse retratada como a principal faculdade da sua personalidade, do seu temperamento artístico e da sua inspiração poética – imaginação à qual dizia dever o melhor da sua vida, porque através dela podia evadir-se sem esforço do círculo de abjecção e miséria moral de uma sociedade com tal poder esterilizador, que, como concluía, a mais simples prática da justiça, do bem ou do belo se convertia em utopia inexequível e grotesca; a imaginação conciliadora das situações mais antagónicas; a imaginação, por vezes o excesso de imaginação, de que não tinha receio, mesmo quando se apercebia que o extraviava pelos caminhos do absurdo, porque, afinal, como confessava, a imaginação sempre suavizou e aformoseou a sua existência, ao ponto de tornar plausível à arte o que não era possível à razão; a mesma imaginação onde, usando as suas palavras, nas crises mais agudas e aflitivas de náusea e descrença encontrou o refúgio acolhedor, o remédio para todos os males, conserto para situações irreparáveis, restauração plena das forças perdidas e já declaradas insubstituíveis.
Em suma, a imaginação que tinha a virtude de transformar momentos de atonia absoluta em surpreendentes devaneios e divagações; uma imaginação, com que reflectiu sobre a teoria do conhecimento, para chegar ao belo; com que discorreu sobre a existência de Deus, a moral ou a solidão; e uma imaginação que fazia questão de aprofundar, exorcizando-a, de preferência, na leitura dos poetas malditos, dos artistas controversos e dos filósofos proscritos.
Por outro lado, sentíamos que era nossa obrigação tentar perceber se havia algo de verdade na afirmação de ter nascido demasiado tarde num século demasiado velho ou se esta era apenas a demonstração da irreverência de um jovem que se cruzara com Rolla, um poema, na altura em que foi escrito, do também jovem e insolente Musset.
Finalmente, sentíamos que valia a pena procurar projectar alguma luz sobre aquele que confessava ser um jogo com que se entretinha a distorcer a lógica e o sentido das palavras, tornando fácil, por paradoxo, uma escrita de significação complexa, bem como contradizer aqueles que não conseguiram ver para além do falso rasto que deixara quando decidiu declarar-se “impotente, por indiferença e frigidez, para sustentar a mais leve discussão de ordem estética ou filosófica”
NOTA: Relativamente ao original, que pode ser solicitado à Editora Arandis, estes fragmentos, que irei publicar até ao próximo dia 18 de Outubro, data que assinala o falecimento de Manuel Teixeira Gomes, não contêm as notas bibliográficas e explicativas. No final, se os leitores as solicitarem, terei todo o gosto em publicá-las.