Manuel Teixeira Gomes (1)

Argel, 20 de Janeiro de 1926

O prazer de usufruir pausadamente

A partir de Argel, Manuel Teixeira Gomes dá início a uma obra epistolar publicada, tendo como interlocutor o seu querido amigo Columbano Bordalo Pinheiro.

COM sessenta e seis anos de idade, havia tomado o vapor Zeus e partira em direcção ao Mediterrâneo, numa viagem há muito desejada, e talvez até programada, seguindo os passos de muitos dos autores de histórias de viagens e aventuras pelas quais sempre se sentira atraído.

Depois de percorridas algumas milhas, na primeira escala, em Setúbal, dado o mau estado do mar, com o vapor a fazer três ou quatro avançadas para a barra e outros tantos regressos, MTG despede-se do seu país, aproveitando as diferentes luminosidades proporcionadas pelo tempo de espera interminável, que a embarcação levou para zarpar, para transpor para a tela aquele que considerava um panorama soberbo:

Levanta-se a costa quase a pique, altíssima e recortada, feita de argila vermelha, ferruginosa, toda tinhosa de vegetação verde-negra, e dominada pelo esporão onde assenta o formidável castelo de Palmela; depois os castelos de S. Filipe e do Outão, e, na espessura da Arrábida, o convento desesperadamente ermo, com as celas dispersas, a escorregarem para o mar.

Era com este olhar solene e rigoroso de pintor renascentista que entrava mar-adentro, registando de forma naturalista as manchas e as cores intensas e observando na cadência do seu afastamento em relação à costa o esfumar das linhas de contorno de um país, ao qual, por opção própria, nunca mais regressaria.

Terá passado muito ao largo, porventura durante a noite, da sua Vila Nova de Portimão, do seu Rio Arade, da Ponta do Altar e da Baía de Lagos, e a este quadro, que tantas vezes irá recordar em belas páginas de saudade, não se refere na sua primeira carta.

É, de resto, uma carta curta, onde descreve com brevidade a sua chegada a Tânger, uma cidade que lhe traz à memória George Borrow, “um escritor inglês, de prodigioso talento, nunca lido em Portugal” – um daqueles autores cuja obra se cruzava com a viagem que desenhara à boa maneira de les grands tourists.

E Tânger, de facto, lá estava, como uma white dove brooding on its nest, a imagem-síntese que Borrow gravara na sua aproximação à cidade, numa obra publicada em 1843, com o título The Bible in Spain – tal qual, ao vivo, agora podia testemunhar o olhar de MTG.

E aqui se iniciava o cumprimento de um itinerário, inicialmente impreciso, que já havia explorado há quarenta anos, quando ainda jovem e ao serviço dos interesses comerciais da família. Mas, ao contrário do primeiro mês de viagem, “em perpétuo mobile: cinematográfico”, la Grand Tour iniciava-se devagar,

Pormenor de «Vista da cidade de Marrocos» – desenho e gravura de Francisco Pastor. O Universo Illustrado, 1879 – Revista onde MTG terá tido oportunidade de ler uma sequência estimulante de artigos ilustrados sobre o norte de África, mas também sobre muitas cidades europeias, designadamente Florença, que visitou e percorreu demoradamente.

exactamente por demanda de um secreto sentimento de dignidade, e por exigência de uma estética que se estruturava na consciência do olhar, ou seja, na racionalização de uma contemplação repetida e intimista que lhe permitia fixar sentimentos e sensações.

Pormenor de Fortaleza de Gibraltar – desenho e gravura de João Pedroso. O Universo Illustrado, 1877.

Vista da cidade de Argel – fotografia da primeira metade do século XX.

Correr era ridículo. Não se coadunava com o trabalho árduo e lento do desenho e da escrita. Não se harmonizava com o prazer de usufruir pausadamente monumentos e lugares que repousavam longínquos e confusos na sua própria memória.

Depois veio Gibraltar, “a penha árida, a querer reverdecer à força de artifícios; e o porto de desembarque, Oran, sobre rochedos em meia-lua, 

Pormenor de Molhe de Argel – desenho e gravura de João Pedroso. O Universo Illustrado, 1877.

cortados às talhadas por grandes cataclismos”; veio a paz de Tlemcen, onde as amendoeiras em flor o fazem sentir-se em casa; o deserto de árvores que encontra em Taza; o mau-cheiro de Fez; a imensa e deserta Mequinez, com portas colossais para “ruínas debruçadas sobre paisagens de sonho bendito”; e finalmente Argel, a cidade cuja beleza lhe enche os olhos e anestesia alguma nostalgia.

Estava na hora de falar de arte. Não de arte muçulmana, pela qual Columbano não nutria qualquer simpatia, nem tão-pouco MTG, que a considerava monótona e quase anti-humana, mas de arte greco-romana.

A arte islâmica, marcada por uma gramática decorativa de motivos geométricos e vegetalistas, mas sobretudo por uma iconoclastia que não aceitava a arte figurativa e proibia a escultura, pelo menos a escultura que ultrapassasse a dimensão do pequeno objecto decorativo, nada tinha a ver com uma herança clássica que idealizava o homem à imagem dos deuses e o devolvia à natureza.

Esse homem encontrava-o MTG nos museus de Argel e Cherchell, onde bebia a pura maravilha de Apolo e onde embriagava os sentidos perante um torso de Vénus – um modelo tão vivo e sensual que quase não resistia à tentação de lhe meter as mãos, para o apalpar. Este um impulso que MTG dizia Miguel Ângelo – o mais idealista dos artistas, em cujas esculturas entendia correr “um eterno frémito de sensualidade carnal” – não conseguir evitar perante o torso de Ilissus, sustentando a sua metáfora na pintura de Alexandre-Evariste Fragonard, uma porcelana exposta no Museu do Louvre, onde o escultor, já cego, é conduzido ao Capitólio para desfrutar pelo tacto algumas obras de arte antigas.

Em todo o caso, se para Miguel Ângelo o sentido do tacto estaria inevitavelmente relacionado com a memória visual, com a confirmação do conhecimento e com o fazer, porventura com os mais ardentes apetites do amor místico, em MTG, que não via grande diferença entre o amor pelo objecto ausente e o amor sensual, meter as mãos, apalpar, constituía um gesto confinado à transgressão, a uma vontade quase obsessiva de possuir, que o colocavam, nesta situação concreta, em oposição, nunca ultrapassada, a Immanuel Kant e à sua teoria da arte desinteressada. Oposição que, naturalmente, também manteria em relação a Arthur Schopenhauer, o defensor de uma espécie de arte ascética que o levava a criticar as obras que estimulavam os desejos e os apetites mundanos; embora, em sentido contrário, este fosse um pressuposto que o aproximava de Nietzsche, quando o autor da dissertação sobre a Genealogia da moral se divertia à custa da incapacidade da maioria dos filósofos se relacionarem com a sensualidade, até mesmo perante estátuas nuas de modelos femininos. De resto, negação de «interesse» que o próprio Nietzsche procuraria desmistificar, ao confrontar o mesmo Schopenhauer, e a sua teoria do efeito sedativo da vontade perante a contemplação do belo, com a ideia do belo como uma promessa de felicidade defendida por Stendhal, o poeta De L’Amour, para concluir que a excitação da vontade sentida pelo poeta era comparável ao “mais forte e mais pessoal interesse, o do torturado que se livra da sua tortura”.

NOTA: Relativamente ao original, que poderá ser solicitado à Editora Arandis, estes fragmentos, que irei publicar até ao próximo dia 18 de Outubro, data que assinala o falecimento de Manuel Teixeira Gomes, não contêm as notas bibliográficas e explicativas. No final, se os leitores as solicitarem, terei todo o gosto em publicá-las.