Como o vírus ainda anda por aí, o confinamento continua a alterar-nos o tempo e a própria noção do tempo.
Tempo que me permite, calmamente, meditar sobre a vida e a morte.
E tempo que me dá tempo para revisitar um significativo número de revistas e jornais cujo interesse histórico tem justificado juntá-los ao longo da vida. Em suma, trata-se de não deixar morrer a memória do tempo e da vida, e esta mania tem-se revelado uma prática interessante e útil.
Ontem, por exemplo, ao recuar uma década no tempo, dou com uma Visão das «praias longe da multidão», e dou conta do paradoxo viral que, afinal, hoje obriga a multidão a ficar longe das praias. E tropeço também numa Única»,
onde Marcelo aponta para o Zé Povinho, numa das suas expressões bem portuguesas, e vem-me à ideia, não sei porquê, de, afinal, ser o Zé que lhe está a fazer o manguito.
Depois, no discorrer do tempo, começa a bailar-me na cabeça aquela frase que encerra uma convicção também muito portuguesa: O POVO TEM SEMPRE RAZÃO.
E, de facto, o povo talvez tenha sempre razão, ainda que esta certeza não passe de uma falsa crença ou de um erro que desvela uma certa loucura. Basta ver o delírio pascal que motivou tanto povo a sonhar estender-se ao sol nas ditas praias. Mas lá está: Wittegenstein tem toda a razão quando nos lembra que, se na vida estamos rodeados pela morte, então, também na saúde da razão, estaremos rodeados pela loucura. Loucura que talvez possamos admitir como a tentativa de conciliar o inconciliável.
Já Marcelo, que escolhe a célebre imagem do Bordalo para um perigoso jogo que sempre gostou de jogar, imagina umas «minientrevistas» que diz serem uma ficção, embora uma ficção que lhe parece realidade.
Um cruzamento da realidade com a ficção que o antigo comentador transferia para os portugueses, quando, numa tentativa de dar racionalidade ao delírio, os questionava sobre o sonho que sonhavam para 2020. De resto, o mesmo exercício que, dez anos passados, agora como presidente de todos os portugueses com razão, procura espevitar-lhes a falta de consciência, quando, na ausência de beijos e abraços, decide afirmar que não quer «estado de emergência» no próximo mês de Maio.
Certo é que um povo, que tem um presidente à altura da sua loucura, não deixa de ter razão quando, a propósito de desejo de liberdade, confunde a lógica com o devaneio.
E nós, roubando uma sentença a Kierkegaard, com a paciência própria dos inconscientes, que têm sempre razão, temos de ter muita coragem para ouvir o que tem a dizer-nos a loucura e a morte.
Já agora, sabem o que sonhavam os portugueses em 2010? O mesmo que sonham hoje: saúde e trabalho. Como se o trabalho pudesse dar saúde a alguém e o estar em casa, tranquilo, longe do vírus, matasse.