O culto do livro

A propósito das dificuldades que os editores e livreiros defrontam neste período particularmente difícil – todos eles ameaçados pelo covid 19, uma estirpe letal de traça que ataca o livro e mata pessoas – talvez valha a pena rememorar a capacidade de resistência desta espécie de casmurros que insistem em não desistir da mediação entre a realidade e a ficção, persistindo num exercício, diríamos quase conspirador, para modelar o homem e o mundo.

A sua história, associada à dos tipógrafos e à indústria do livro e do jornal, devia dar origem a um monumento; podia dar forma a uma bela e justa edição de luxo; e a aventura 

das suas vidas certamente daria muitos argumentos para chegar com sucesso à tela do cinema.

Estou a pensar na sua luta contra o analfabetismo; estou a pensar nas leis que ao longo dos séculos definiram o abuso de liberdade de imprensa e na sua coragem para enfrentar a censura. Mas, no momento em que o confinamento vai permitir que abram as suas portas, estou também a pensar no seu discernimento e inteligência para manterem vivos os seus sonhos.

Ao revolver alguns dos meus registos e ao consultar As Artes gráficas e a Imprensa em Portugal, onde muita desta gente faz parte do elenco da história verdadeira do design gráfico no nosso país, no período que medeia a edição impressa do nosso primeiro livro, em Faro, e o período de transição do século XIX para o século XX, podia escolher muitos intérpretes. Por exemplo: Manuel de Jesus Coelho,

Desidério Marques Leão, Irmãos Castro, António José Fernandes Lopes, Domingos Francisco Lopes, Pedro Augusto Correia da Silva, Evangelista Torres de Jesus, António Maria Pereira, Henrique Marques, David Corazzi, Henrique Zeferino, Matos Moreira, José Pinto de Sousa Lello, Ernesto Chardron…

Mas, para uma breve e curiosa estória, vou recordar a Livraria Central e Gomes de Carvalho, um editor que, em 1908, decidiu adoptar uma estratégia divulgada no jornal O Liberal, num curioso artigo, que seria transcrito nas páginas de outros periódicos da época, e que, mais de 100 anos depois, aproveito para também replicar um excerto:

Lê-se em Portugal! Uma das livrarias de Lisboa, a Livraria Central, de Gomes de Carvalho, rua da Prata, querendo, generosamente, corresponder a esta tendência do espírito público, vai instituir prémios aos compradores de livros. Quem adquirir volume cujo preço seja acima de 500 réis, recebe uma senha que o habilita a um passeio em automóvel a Mafra ou à Batalha, dois belos padrões históricos da nacionalidade,

Este brinde é mais um elemento de estudo. De automóvel, grátis, toda a pessoa que comprar um livro está habilitado a sair de Lisboa, viajar, estudar, ver, quebrando assim a monotonia da vida.

Gomes de Carvalho, cuja personalidade editorial tem jus à nossa admiração, presta, pela sua iniciativa, um serviço patriótico. A ideia, ainda há horas lançada a lume, conta já milhares de adeptos. Comprar livros na Livraria Central é poder, de graça, percorrer o país de automóvel. Há empreendimentos que se impõem por si apenas, não necessitando de reclamo. O proprietário da Livraria Central vale por todos os elogios. É nobre, é digno!

É claro que a curiosa estratégia escolhida não se deveu ao facto de que em Portugal se lia muito, mas sim a mais uma das crises sociais que naturalmente reduzia a venda de livros e punha em perigo o negócio do nosso inteligente Gomes de Carvalho – dizer que se lia muito servia naturalmente a publicidade da dita estratégia.

Mas, sem querer alongar-me muito, julgo que será interessante conhecer um pouco mais da história da Livraria Central. Com efeito, a origem da sua denominação remete-nos para a primeira metade de século XIX, quando o tipógrafo Francisco Vieira da Silva Júnior, convicto de era importante a instrução chegar às chamadas classes baixas da sociedade, decidiu formar uma associação de operários, que se responsabilizaria pela criação de um gabinete de leitura e pelo lançamento de um jornal. Associação que, pouco tempo mais tarde, daria lugar a uma outra, agora com o objectivo de publicar um periódico literário e instrutivo com o título de Revista Recreativa. Lamentavelmente, em Outubro de 1846, a guerra civil acabaria com a publicação e com a referida associação. Contudo, dois anos passados, dada a persistência de Vieira da Silva, daquela associação nasceria uma Sociedade de Tipógrafos cujo propósito se centrava na edição da Bibliotheca Litteraria, uma folha onde se publicaram romances originais, mas sobretudo traduções efectuadas pelo próprio Vieira da Silva e por José Melquíades Ferreira dos Santos, este também um tipógrafo que, a dada altura, entendeu que o projecto poderia ajudar a angariar alguns lucros para acrescentar ao mesquinho produto da sua arte – argumento que viria a concretizar ao fundar a editora J. Melchiades & C.ª, Livreiros, que ficaria conhecida por Livraria Central, inicialmente estabelecida na Rua do Ouro, depois, já na posse de Gomes de Carvalho, na Rua da Prata e, mais tarde, na Av. Almirante Reis.

Afinal, em que memória estariam gravados os segredos e a arte de Camões se não fosse o engenho de Gutenberg e a fé dos seus apóstolos?