Uma extraordinária mulher - algarvia e designer
A propósito do importante trabalho gráfico de Raquel Roque Gameiro dissemos que talvez se justificasse integrá-la na primeira geração de modernistas, e até admitimos que poderá ter sido, entre o número muito reduzido e pouco reconhecido de designers portuguesas, a mais importante, ou pelo menos a mais profícua, da primeira metade do século XX. Mas, quando percorremos a obra de Maria Keil, não temos dúvidas em afirmar que estamos perante mais uma artista designer cuja passagem pelas artes gráficas tem a particularidade de lhe ter permitido cruzar-se com o tempo da Raquel e dos autodidactas, mas também com o dos artistas gráficos formados nas
velhas escolas de artes aplicadas, como a António Arroio, em Lisboa, e Soares dos Reis, no Porto, e os primeiros designers, com escola, já licenciados.
E neste longo percurso, a Maria – esta a forma simples e despretensiosa como assinava a maioria dos seus trabalhos – teve o privilégio de caminhar, sempre desperta para aprender, ao lado de várias gerações que deram forma e cor a muito suporte gráfico produzido no âmbito da mediação entre os portugueses e a arte, a literatura, o jornalismo e a cultura, de uma forma geral, mas também entre os consumidores e as empresas.
Nascida em 1914, marcada com semelhante destino de Bernardo
Marques, também natural de Silves, e Roberto Nobre, de S. Brás de Alportel, Maria Keil, com 15 anos, ruma a Lisboa entusiasmada com a ideia de ser pintora, mas acaba por dispensar a Escola de Belas Artes, onde, na altura, e sempre, como muitos dos seus alunos, entendia que o ensino ali ministrado pouco acrescentava ao seu desejo de crescer como artista.
Nunca abandonando a pintura, mas ficando sempre com muitas dúvidas sobre o seu estatuto de pintora, Maria Keil, ainda muito jovem, ao assumir a condição de operária das artes, como gostava de se designar, na década de 1930, optava por se dedicar às artes gráficas. Artes gráficas que constituíam um espaço de intervenção plástica onde fervilhava a ideia de um Estado Novo, interessado em mostrar-se moderno e cosmopolita, mas cujo enviesamento dos propósitos culturais do S.P.N./S.N.I., dirigidos por António Ferro, acabaria por desiludir muitos deles.
Na prática, a pretensa mudança da imagem do país absolvia muitos artistas do pecado de pretenderem viver da pintura ou da escultura, e Maria Keil, cedia à aventura da chamada arte comercial, onde, no âmbito da ilustração, do design editorial e da publicidade, palpitavam a imaginação e a criatividade dos já referidos conterrâneos, e outros como Stuart Carvalhais, Emmérico Nunes, Jorge Barradas, Almada Negreiros, mas também Fred Kradofler ou José Rocha, todos eles disponíveis para colaborarem com editores, escritores ou arquitectos, como foi o caso do seu próprio marido, Francisco Keil do Amaral, que coadjuvou em vários dos seus projectos, designadamente com grafismos decorativos que, ao passarem à azulejaria, entre 1937 e 1950, iluminaram os pavilhões portugueses nas exposições internacionais de Paris, Nova Iorque e São Francisco, na Exposição do Mundo Português, assim como várias das estações de metro de Lisboa e inúmeros outros edifícios que aí estão para refletir o brilho do seu génio na disciplina onde, como confessou, se sentiu mais realizada.
Faz no próximo dia 10 do presente mês oito anos que Maria Keil nos deixou e estamos à espera de ver reunida numa grande exposição comemorativa a diversificada e extraordinária obra de uma também extraordinária mulher algarvia.