Encontros inesperados na Ilha da Madeira

Numa passagem recente pela Ilha da Madeira, a propósito da divulgação de algumas gravuras impressas nos nossos jornais e revistas oitocentistas, que me têm permitido deduzir como a capital do Império olhava a descoberta da sua primeira colónia, pelas ruas estreitas, sempre inclinadas, algo confusas, mas também estranhamente misteriosas da velha cidade do Funchal, atraído por uma espécie de caleidoscópio de cores vibrantes, espreito por uma porta aberta e deparo-me com livros. Muitos livros, muitos milhares de livros dispostos de uma forma que contraria as regras de todas as livrarias e bibliotecas que ao longo da vida tenho visitado.

Embrenho-me por intermináveis e estonteantes corredores de volumes suspensos do tecto ao chão e percebo que é impossível deter a minha curiosidade. De início é mesmo impossível conseguir fixar ou localizar uma qualquer obra cujo autor ou título que me desperte interesse.

De repente, algo inesperado acontece. Mesmo à minha frente, encontro Picasso. Um velho amigo que tive oportunidade de retratar há mais de trinta anos.

Pablo??? Que fazes aqui na Ilha da Madeira?

Viva José! Que bom ter-te encontrado. Pois, vim procurar a Cecília… E estou aqui preso, como vês, pendurado…

 

Cecília? Que Cecília? Alguma musa perdida no meio do Atlântico?

Sim! A vilôa que mexeu com o teu presidente sem moral nenhuma… A mulher da beleza estonteante que desejava ser cabra e comer de bruços a erva verde…

Esse é um quadro que verdadeiramente merecia ser desenhado… Para ser exposto, por exemplo, ao lado do «Fauno desnudando uma mulher». Mas, infelizmente, nada posso fazer por ti. Eu próprio a tenho procurado nos olhos verdes de tantas Cecílias com que me tenho cruzado…

E assim nos despedimos. Picasso, aguardando mais uma das suas aventuras amorosas, agora com a mulher que desejava imortalizar, e eu, a percorrer os vários pisos do estendal literário da livraria Esperança.

Mas, ao virar no corredor mais próximo, depois de subir meia dúzia de degraus, dou conta da presença de Nerval. Outro velho amigo de quem, também há já várias décadas, tive o prazer de lhe ilustrar o rosto das suas Noites de Outubro.

Gérard??? Também por aqui?

É verdade! Ando em viagem, na peugada de estórias!

Por acaso conheces a de Roberto Machim e sua amada Ana Arfet?

Nunca ouvi falar de tais personagens, mas deixas-me curioso.

Tens de ir a Machico, o presumível lugar onde terão dado à costa, depois de apanhados por uma violenta tempestade, e onde morreriam, ela esgotada pelo remorso, e ele pelo desgosto de a ter perdido. Por lá, todos acreditam que se trata de um trágico, mas verdadeiro, romance associado à descoberta da Madeira.

Parece-me um argumento que pode encaixar nos meus contos fantásticos.

E virando costas, cada um seguiu o seu caminho. Nerval, na esperança que alguém, ao vê-lo ali suspenso por grampos, o libertasse para mais uma das suas aventuras, e eu no meu exaustivo percurso, por entre os livros e os jornais, desta vez perseguindo o rasto da nossa memória colectiva.